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domingo, 15 de julho de 2007

Arquivo

Texto de Abertura
Olá,Este Blog tem por objetivo a publicação de idéias filosóficas e suas discussões...qualquer interessado em postar algo aqui deve mandar um e-mail para: humptvivacqua1@yahoo.com.br...
Obrigado pela breve atenção!

Original em 12/01/2006

De Murilo
Um amigo meu, Samir, teve uma idéia para um filme que achei genial; ele me propôs que o escrevêssemos juntos; acho, na verdade, que muitas pessoas poderiam contribuir para ele.Bom, a idéia dele era a seguinte:
O filme começa de uma maneira pacata. Um jovem aparece num concurso como o do Domingão do Faustão ou Big Brother. Os nomes dos programas – e do canal – podem, e devem, é claro, ser outros.O jovem passa numa etapa, vai para outra – e assim sucessivamente. Até que chega no ponto máximo. O condutor do programa então se vira para ele – entrega o microfone para ele – ao vivo – é essencial que seja ao vivo – e ele:
“A televisão está lavando o cérebro de vocês, espectadores” – e por aí vai.*A cena é cortada.
Nos bastidores, ele é espancado.
Os amigos – que viam tudo pela televisão – ficam alarmados. Seqüestram o filho do dono da rede de televisão. Eles querem o amigo de volta. Eles já estavam no plano, desde o início.
Samir (se me lembro bem) sugeriu que eles explodissem as antenas transmissoras do canal.
Sugeri que eles tomassem o canal e colocassem no ar as suas idéias.Ontem vi Edukators.
Hoje, conversando com minha mãe, surgiu a seguinte idéia:É ano eleitoral – ou véspera de eleição. Um grupo de amigos – como os do Samir ou dos Edukators – investiga por conta própria os candidatos – e coleta evidências.
Tentam colocar no jornal – não conseguem... Na televisão, idem...Então, eles seqüestram um canal de televisão e colocam tudo no ar.Seqüestram o canal por falta de opção...
Dois ou três dias antes da eleição...
Fim do filme poderia ser o resultado dessa intervenção na mídia.*aqui ele poderia falar dos candidatosSamir Gorsky wrote:Suas idéias são muito boas...posso publicar esses textos naquela página da net...???
Até mais
Marcos e Samir,
Beleza, galera?
Espero que esteja tudo bem com vcs –
Bom, estou mandando uma parada aqui talvez interesse a vcs...É um texto deplorável, preciso já deixar claro; mal redigido e superficial, não tem outro mérito a não ser o de encerrar uma idéia que talvez possa ser melhor trabalhada: é um comentário sobre um filósofo inexistente.Talvez seria legal escrever um comentário sobre os pensamentos de um mendigo ou de um louco - onde poderíamos ao mesmo tempo colocar nossas próprias idéias e brincar com elas...
Uma série de artigos, talvez... Um sobre a metafísica, outro sobre a sociologia, outro sobre a ética de um personagem fictício...É isso aí –
Abraços,Murilo.
De Murilo

Samir,

Como é que vc tá, cara? Bom, aqui estão algumas idéias para o longa. Não me deixe fazer tudo sozinho. É o contrário que deveria acontecer, eu ajudar você.

Está faltando um final. O final, é claro, precisa ser bom, excelente.

É só uma estrutura geral o que estou mandando, apenas sugestões. Seja como for, acho que é bom ter uma idéia geral do filme antes de partir para o roteiro propriamente dito – para não termos que reescrever a primeira cena quando chegarmos na quinta, etc. É bom ter a idéia clara antes de escrever.

Falta amarrar mais as coisas. Quero dizer, mesmo esse esboço, que é bem geral, precisa ser melhor amarrado. Detecte o que precisa ser melhor amarrado. E amarre.

Você pode modificar o que quiser, é claro. Talvez eu tenha modificado demais a sua idéia original, não sei. Bom, acho que o objetivo deve ser sempre deixar o filme bom, o melhor possível. Não tenha medo de descartar uma idéia minha. Estamos nessa fase: de elaboração da estrutura geral. O que tiver que ser descartado, é melhor descartar logo para ser menos tempo jogado fora depois.

Estou mandando também um plano geral para outra parada, de natureza bem diferente. Não é para um filme, é para um livro, repleto de descrições psicológicas. Mas dirija sua atenção principalmente para o roteiro. É melhor ter uma parada concluída do que duas pela metade.

(Desculpe-me por escrever de maneira tão objetiva. É por falta de tempo mesmo. Bom, você sabe que eu gosto de você pra caralho – não do seu caralho, e sim pra caralho – então a gente pode dispensar essas frescuras).

É isso aí –

Abração,

De Murilo.

Estrutura geral

1

É ano de eleições. Um grupo de amigos conversa sobre os candidatos. Um deles, estudante de história, acha que x é o melhor candidato.

2

Esse estudante de história vai para biblioteca fazer pesquisa para um trabalho da faculdade.

3

Em suas pesquisas, descobre acidentalmente, numa revista que não existe mais, uma antiga matéria sobre o candidato x.

4

A matéria mostra sujeiras sobre x, que conseguiu se safar usando brechas na lei.

5

Esse estudante encontra de novo os amigos. Um deles havia sido convencido por seus argumentos a votar em x. Ele mostra uma cópia da matéria que achou nos arquivos da biblioteca.

6

No meio da conversa, surge uma idéia: eles poderiam investigar por conta própria os atuais candidatos à presidência. São três candidatos.

7

Eles começam as investigações. Convencem um chaveiro a ensiná-los seu conhecimento. Um deles trabalha numa empresa de segurança eletrônica para aprender a desativar alarmes. Eles também fazem um levantamento histórico de artigos sobre os três candidatos.

8

Eles passam por várias situações tentando coletar evidências sobre as sujeiras dos três candidatos.

9

Aos sábados, os amigos começam a se juntar para assistir um programa na televisão. Eles torcem por uma pessoa que vai passando sucessivamente de nível. A final vai ser poucos dias antes das eleições, passa no programa. Eles se entreolham. Eles também acompanham a evolução dos candidatos na televisão, nas revistas e nos jornais: qual é o mais cotado, a história oficial de cada um deles, etc.

10

De três maneiras diferentes, eles recolhem evidências dos três políticos. A maior parte do filme é isso.

11

As eleições estão próximas. Eles já têm as evidências, as provas. Tentam levá-las para um canal de televisão. Não aceitam. Tentam levá-las para um jornal. Não aceitam. Tentam levá-las para uma revista. Não aceitam. A revista, por exemplo, pode aceitar as provas, e dizer que vai publicá-las. Só que elas nunca aparecem.

12

Os amigos pagam uma gráfica para imprimir cartazes com a capa do próximo número dessa revista. Só que é uma capa falsa, falando das sujeiras dos três candidatos. Eles podem até mandar imprimir uma revista falsa, com artigos que eles mesmos escrevem.

13

Pesquisa na televisão mostra que os cartazes não tiveram nenhum efeito.

14

Está chegando o dia da eleição.

15

A pessoa pela qual torciam chega na final do campeonato do programa de televisão. Ao vivo. Ela pega o microfone e fala dos candidatos. A cena é cortada. Era um amigo do pessoal.

16

O amigo não volta para casa.

17

Eles seqüestram filho do diretor do canal.

18

Trocam pelo amigo.

19

Um dia antes das eleições, eles invadem o canal de televisão e colocam as provas no ar.

20

Dias depois, eles vêem o resultado pela televisão.

Notas:

Cena:
Eles fazem o DVD, colocam na hora do jornal na casa de alguém – a mãe assiste, sem saber, fica surpresa... Aparece o filho... Depois eles falam: é brincadeira e tal...
Depois: a mãe realmente vê eles na televisão – fica boquiaberta.

Abertura:
“Você acha que vai adiantar alguma coisa?” – diálogo de dois amigos, que dá a entender que estão falando de política, de revolução – mas é de carro, depois fica claro.






Plano geral para livro:

Parte I

Cap.1

O ambiente é um mosteiro misto, com homens e mulheres.

Helena era freira.

Cap.2

Garcia pediu Helena em casamento, no tempo do convento, para saírem os dois de lá.

Cap.3

Helena recusou.

Cap.4

Um dia chega ao convento Santos.

Cap.5

Um clima envolve Santos e Helena. Santos se mostra interessado por ela. Talvez seja um interesse só sexual. Mas ela sente algo mais puro.

Cap.6

Garcia percebe.

Cap.7

Helena é estuprada de noite. Estava tudo escuro. Helena não sabe quem foi.

Cap.8

Santos tem uma atitude suspeita no dia seguinte.

Cap.9

Helena se afasta de Santos, decepcionada. Pensa que é ele.

Cap.10

Barriga começa a crescer, não há mais como esconder.

Cap.11

Helena fica desesperada. Uma freira grávida.

Cap.12

Helena se abre com Garcia, fala das suas suspeitas. Diz que está com medo. Diz que acha que foi Santos, ele tinha acabado de chegar no convento.

Cap.13

Garcia é áspero com Santos, mas não deixa claro porquê.

Cap.14

Helena aceita casar-se com Garcia.

Garcia aceita ser pai do seu filho.

Parte II

Cap.15

O filho é Romero.

Cap.16

Romero cresce.

Cap.17

Garcia está perto da morte.

Recusa cuidados da esposa.

Garcia é brusco com Romero quando este vai fazer algo (por causa do ‘sinal’ no ombro). Diz “Você não é meu filho”.

Cap.18

“Seu pai é um homem sério, bondoso... Não fale dele assim...”, diz Helena para Romero. “Ele não é meu pai”, diz Romero.

“Acho que seu pai não me ama, porque não foi o primeiro a me possuir”, diz Helena.

Cap.19

Romero sente a mãe sempre distante.

Ele quer saber porquê. Ele já sabe porquê.

Cap.20

Romero suspeitava que ele era filho de outro.

Mãe resolve contar que ele é filho de estupro.

“Quem, quem?”

“Não sei quem, meu filho. Talvez um homem que amei, talvez o único que amei.”

Ela fala de Santos.

Cap.21

Romero vai atrás de Santos.

Cap.22

Ele encontra Santos no convento.

Eles conversam.

Cap.23

Romero o agride.

“Por que você estuprou minha mãe, Santos? Eu sou seu filho!”

Santos nega.

Mas diz “Eu amava a sua mãe”

Cap.24

Por fim, sendo espancado, Santos vê “sinal” no ombro Romero, mesmo sinal que viu em Garcia, também no ombro, vinte anos atrás.

Santos compreende.

“Sei quem estuprou sua mãe, Romero.”

“Quem foi?”

“Seu pai”.

Cap.25

Romero corre para ver se Garcia tem a marca.

Cap.26

Romero vê a marca.

Cap.27

Romero fala com a mãe. “Me odiaste, eu que nunca fiz nada, enquanto vivias ao lado do homem que te estuprou”.

A mãe compreende o sórdido plano de Garcia.

Cap.28

Romero mostra a marca do pai à mãe, que ela nunca viu.

Cap.29

Mãe queda em depressão.

Cap.30

Garcia morre.


De Lucas Seco


E por falar em sobrenomes, vc já notou o seu: "se abra", fantástico!Como vai Murilo? Gostei muito de ter recebido e-mails seus, apesar de só respondê-los agora. Desculpa viu, estive numa fossa aqui em Bsb e, vc não vai acreditar, ainda me envergonho de estar nessas fossas, aí me fecho e não procuro ninguém. Aliás, nessa vinda a Bsb me fechei mesmo, por isso não te procurei para aquela jam session, nem procurei ninguém. Até os poucos que me procuraram eu não fui atrás. Foi uma tentativa de organizar a bagunça da minha cabeça. Não deu muito certo, da próxima vez vou tentar alguma coisa diferente...Sobre a Mariangeles, não se preocupe, eu não a sacaneei. Eu achei legal vc ter perguntado. Pq tem essa história por aí que amigo não cobra e tal: eu acho isso a maior balela, tem que cobrar sim. A gente se conhece pouco, então achei legal vc ter cobrado de mim uma atitude boa com relação à Angeles.
Eu poderia dizer que estava sacanenando ela, usando-a para suprir minha carência afetiva. A minha história com ela é complicada e estava se arrastando desde a época que ela se foi de Campinas. Depois que fomos namorados não conseguimos mais ser amigos e isso fodeu tudo, literalmente: todo contato afetivo envolvia sexo e isso mnão estava sendo legal para nenhum dos dois. Não sei se vc já passou por isso. A gente resolveu então dar um tempo para ver o que faziamos de nós dois. Ai eu resolvi dar uma afastada para deixar de sacanear-la de uma vez por todas. Mas podemos conversar mais sobre isso depois se vc quiser. Não sei para você, mas para mim histórias de homem e mulher são complicadas.
Falar em foder, como vai a p*&#%! dissertação? É foda escrever né? Eu mesmo não tenho o que te dizer pq passei por isso no mestrado e estou passando por isso no doutorado. É f*&#% quando um negócio contamina todos os seus pensamentos... Um dia ainda faço um estágio no Tibete para me aprender a me livrar disso... Ou quem sabe fazemos esse estágio juntos?
Enqto isso, podemos fazer estágios Campinas Botucatu e vice-versa (vc inda está lá?) Gostaria sim de ir a tua casa o quanto antes. Amanhã chego em Campinas. Vamos nos falar por e-mail essa semana, quem sabe a gente pode se encontrar nesse final de semana ou no próximo?Eu estava afim de ver a exposição dos dinossauros na oca, coisa de criança mesmo, ver aqueles ossos gigantes, acho que nunca vi... vc topa?Grande abraço do melancólico e transtornado
Lucas Seco.
PS - o que vc consegue tirar do meu sobrenome? Eu nada... talvez pq ele já esteja seco...
PPS - o cd do groo vem com um programa para instalar e ler. Mas pode ser que a cópia que eu te dei não esteja boa... o que vc acha?


De Murilo Seabra

1

Como pode Deus ser onisciente – conhecendo de antemão o futuro nos seus mínimos detalhes – e ainda assim existir liberdade de escolha? Nunca consegui encaixar de maneira coerente esses dois dogmas – proferidos, agora entendo porquê, em momentos freqüentemente apartados: era para que não ficasse claro – para que não saltasse imediatamente aos olhos – que eles se contradizem. Sem essa distância, não há entre eles paz possível. Um não pode adentrar o território do outro sem conflito. Pois para que o primeiro seja verdadeiro, para que Deus possa saber desde o dia em que nasce uma pessoa que ela haverá de sair para passear exatamente quando atingir os seus oitenta mil e trezentos e cinqüenta e seis segundos de idade, é absolutamente necessário que o segundo seja falso, isto é, que ela não tenha liberdade de escolha, e que não possa assim fugir ao plano previamente estabelecido de acordo com o qual ela haveria de sair para passear ao atingir os seus oitenta mil e trezentos e cinqüenta e seis segundos de idade.

2

Foi assim que esses dois dogmas conseguiram, por anos e anos, conviver amigavelmente um ao lado do outro na minha consciência: eles me foram apresentados em ocasiões diferentes; e dessa forma terminei por arquivá-los, a saber, em separado. Cada um em seu canto, não se importunavam. Imagino que algo semelhante deva acontecer com muitos religiosos. Ouvem que Deus sabe o futuro (porque, afinal, não há nada que não esteja ao seu alcance), que ele criou o universo e todos os seres que nele habitam, que ele é supremamente bom, que acima está o céu e abaixo está o inferno, e por fim que ele dotou as suas criaturas de liberdade de escolha. Assim, não fica muito fácil perceber a contradição entre a presciência divina e a liberdade de escolha. Há muitas informações entre elas. Há muitas informações para colocar uma à salvo da outra.

3

Mas não creio que o desencontro entre esses dois dogmas seja sempre maliciosamente calculado pelos religiosos em suas pregações (às vezes só percebemos que foi uma inverdade o que repassamos depois de já tê-la repassado). Talvez seja antes o seu desencontro fortuito que permite que os dois continuem a ser sustentados sem a plena consciência de que estão em contradição. Não há porque dizer que não podem haver religiosos que jamais atinem para essa contradição (como se fossem todos desonestos), assim como não há porque dizer que não podem haver outros que atinem para ela e tentem assim não trazê-la à tona numa mesma e única conversa para evitar o desconforto que ela gera (como se não houvessem religiosos desonestos). Aliás, é também possível que outros tenham se debatido com ela e a tragam deliberamente à tona para apresentar (o que eles pensam ser) a sua solução.

4

Deus sabe o futuro em linhas gerais, talvez digam. Ele sabe de antemão que vamos tomar o caminho da esquerda e não da direita; não obstante, o caminho da esquerda, que estamos determinados a seguir, ainda nos deixa espaço suficiente para exercermos nossa liberdade, pois ele mesmo se bifurca, ele mesmo contém uma esquerda e uma direita. Assim, o problema parece resolvido. Deus sabe que vamos tomar a esquerda, o que preserva o dogma da presciência, mas não se vamos em seguida tomar a esquerda da esquerda ou a direita da esquerda, o que preserva o dogma da liberdade de escolha. Acontece que essa solução não é uma verdadeira solução. Ela somente desloca, ela somente adia o problema. Pois se Deus não sabe se vou tomar a esquerda da esquerda ou a direita da esquerda, então a presciência divina tem limites. Deus não sabe tudo. De fato, onde começa a liberdade, a presciência divina precisa se deter. A presciência e a liberdade são como a água e o óleo, o que essa resposta ao problema, ou melhor, essa aparente resposta ao problema, não exatamente reconhece, mas ajuda a esclarecer. Ela é engenhosa, não há dúvida, e tem o seu valor. Mas ela não realiza o seu projeto. Ela não preserva esses dois dogmas em pleno funcionamento ao conciliá-los. Pelo contrário, ela os restringe, ela pede concessões dos dois lados. Um ainda não entra no território do outro.

5

Uma outra tentativa de solução é dizer que Deus nos deixa livres quando permanecemos no caminho por ele antevisto. Temos plena liberdade para seguir o que foi previamente fixado. Mais uma vez, porém, essa solução não resolve nada. Pois o que ela diz, trocando em miúdos, é que se de acordo com as previsões de Deus deveríamos tomar o caminho da esquerda e a nossa liberdade estivesse prestes a nos precipitar para a direita, ele trataria de nos empurrar de volta para a esquerda. Ele não nos deixaria seguir pela direita. Mas ter liberdade apenas para fazer o que foi previamente fixado não é nem de longe o mesmo que ter liberdade.
6

Agora, imaginemos uma terceira possível solução. Uma pedra não pode pensar que é livre ao rolar montanha abaixo? Ela não pode inclusive sentir que escolhe tomar ora a esquerda, ora a direita, ora deter-se, ora avançar? Mas seu futuro, é claro, já está traçado. Logo, Deus pode saber o futuro e ainda assim haver liberdade de escolha. Contudo, essa solução também não pode ser considerada uma verdadeira solução. Ela preserva a presciência divina, é verdade. Porém, sacrifica completamente a liberdade de escolha em seu favor. Uma pessoa que sempre se sentiu livre e que de repente descobrisse um livro datado de dois séculos atrás onde estivessem registradas todas as suas ações até o momento, e inclusive suas ações futuras, não conseguiria (se tivesse liberdade para tanto) continuar se sentindo livre, especialmente se ela tentasse não fazer o que o livro dizia que estava prestes a fazer (digamos, bater palmas três vezes, saltar uma vez e piscar repetidamente os olhos) e ela fracassasse em seus esforços (e ela de fato batesse palmas três vezes, saltasse uma vez e piscasse repetidamente os olhos). Ela poderia mesmo não conseguir se livrar da sua sensação de liberdade, ela poderia mesmo continuar, contra a sua vontade, contra o seu poder (ou falta de poder) de escolha, a se considerar uma pessoa livre (pois assim estava escrito no livro, isto é, que ela encontraria um livro com a descrição de todas as suas ações, inclusive suas ações futuras, e onde estaria escrito também que ela, mesmo depois de encontrá-lo, mesmo depois de ver que ele jamais erra, continuaria se achando livre). Mas ela não seria livre só por se sentir ou se considerar livre. Assim como achar que dois mais dois é igual a cinco não é suficiente para garantir que dois mais dois seja igual a cinco, achar que se é livre não é suficiente para garantir que se seja livre. O fato de que um prisioneiro não se sente preso não nos permite afirmar que ele não se encontra preso, apenas que ele não se sente preso (e podemos até mesmo dizer agora que ele nunca esteve tão preso).

7

Mas são os dogmas da presciência divina e do livre-arbítrio que não são conciliáveis ou é simplesmente o intelecto humano que não consegue encontrar uma maneira de conciliá-los? Depois de termos esgotado a nossa imaginação tentando colocá-los em acordo, depois de termos visto que nenhuma das soluções que formulamos realmente resolve o problema, não nos resta mesmo outra alternativa a não ser apelar para essa última saída desesperada: não é que estejam em contradição, é antes o intelecto humano, limitado e obtuso, que não consegue perceber que não estão em contradição. Mas se não conseguimos descobrir como guardar um objeto maior dentro de um menor, é por termos um intelecto limitado? Se uma pessoa não consegue se erguer do chão puxando-se pelos cabelos, é por ela não ter suficiente força? Se ela não consegue identificar a oitava vogal da palavra ‘paralelepípedo’, é por ela não ter a sensibilidade visual necessária?

8

Talvez seja interessante lembrar que existe uma diferença entre um problema para o qual não conseguimos encontrar uma solução apesar de ter uma solução (por exemplo, qual é o número que somado a cinco resulta em três?), e um problema para o qual não conseguimos encontrar uma solução por não ter mesmo uma solução (qual é o número natural que somado a cinco resulta em três?). Há uma grande diferença entre um e outro. Há uma grande diferença entre não conseguir resolver um problema solúvel e não conseguir resolver um problema insolúvel. No primeiro caso, pode-se falar em limitação, em incapacidade. No segundo, só em limitação ou incapacidade para perceber que não se trata em absoluto de limitação ou de incapacidade. Mas acima de tudo, meramente dizer que um problema é solúvel (e que é o intelecto humano que é limitado) não prova que ele seja realmente solúvel (assim como meramente dizer que se sabe a solução de um problema matemático, como o número natural que somado a cinco resulta em três, não prova que ele tenha uma solução, e muito menos que se saiba a sua solução, apenas que não se entendeu a questão).

9

Eu mesmo já estive disposto, em outras épocas, a sucumbir a essas soluções. Cheguei mesmo a tomar a primeira delas como certa (Deus sabe que vou tomar a esquerda, mas não se vou depois seguir pela esquerda da esquerda ou a direita da esquerda), até que ela começou a me inquietar (a esquerda da esquerda é uma espécie de esquerda, é também uma esquerda). Mas se ela não funcionava, não via como qualquer outra solução poderia funcionar. Acabei assim por me resignar à idéia de que a solução para o conflito entre a presciência e a liberdade simplesmente não estava ao meu alcance (como se não houvesse nenhuma diferença fundamental entre um problema impossível de se resolver e um problema apenas muito difícil de se resolver). Ainda não me havia ocorrido que talvez esses dogmas simplesmente não fossem conciliáveis. Ainda não me havia ocorrido que talvez estivessem em irremediável contradição, e que o problema aqui talvez não fosse um problema para o qual eu simplesmente não tinha encontrado a solução, mas um problema para o qual não tinha encontrado a solução justamente por ser um problema sem solução (pode alguém resolver um problema insolúvel?).

10

Levei um certo tempo para perceber que minha incapacidade de conciliá-los não provinha de uma fraqueza da minha parte, de uma impotência do meu raciocínio, de uma dificuldade da minha consciência para reconhecer o óbvio, e sim do fato de que um dogma realmente refrata o outro. Não é que eu, um mero mortal, de faculdades limitadas e mente imperfeita, não conseguia conciliá-los. É que não há, jamais houve e nunca haverá como conciliá-los. A presciência divina e o livre-arbítrio são duas peças que não se encaixam, como um objeto simplesmente grande demais para ser guardado dentro de outro: as crianças podem não distinguir, pelo simples exame de suas dimensões, que não adianta dispensar esforço algum tentando realizar o impossível (não há, jamais houve e nunca haverá como colocar o maior dentro do menor, a menos que ele seja amassado para ficar menor do que o menor); talvez elas precisem tentar, repetidas vezes tentar fazer com que os dois objetos se encaixem, e é imaginável até que depois de cada uma das suas tentativas se mostrem perplexas, não entendendo a razão do desacordo. A contradição para elas está oculta. Mas uma contradição oculta é precisamente uma contradição oculta e não uma contradição inexistente, não uma falta de contradição. Não perceber o erro contido na idéia de que uma pessoa pode se erguer do chão puxando-se pelos cabelos não implica que a idéia de que uma pessoa pode se erguer do chão puxando-se pelos cabelos não contenha um erro. Inscrever um quadrado de diagonal vinte numa circunferência de diâmetro dois é claramente impossível (mesmo que essas figuras estejam a mais de um metro de distância não será necessário tomar a régua para ver que a primeira realmente não cabe na segunda). Mas inscrever um quadrado de diagonal vinte numa circunferência de diâmetro dezenove já pode não ser claramente impossível (talvez seja agora necessário medi-las). Não obstante, continua a ser impossível. E não menos impossível.

Antes de mais nada, umas respostas mais imediatas:

1

“gênio tem que ter uma obra com impacto social...quanto maior o impacto maior o gênio...eu não tenho ainda nenhuma obra com impacto social...logo eu ainda não sou um gênio...”

Logo, um gênio também pode ser um imbecil.

(Não estou criticando essa afirmação do Samir, estou apontando uma triste verdade)

2

“no caso das nove moedas...o realismo ainda poderia ser refultado uma vez que o fato de as moedas serem recuperadas pode ser interpretado como "parece que foi recuperado" ou seja...parece que as moedas perdidas são as mesmas que as que foram encontradas...e assim por diante...
mas sugiro não incorporar essa observação ao texto...”

Isso só prova que você é um gênio mesmo. Eu resolvi excluir essa parte do artigo, mas não tinha visto que há mesmo algo errado aqui.

Aliás, a linguagem descrita por Borges não é uma linguagem idealista no sentido wittgensteiniano, ela não é uma linguagem privada, não mais do que o significado de ‘vermelho’ é privado. É por isso que também tirei essa parte.

3

“os fragmentos de texto no final do Borges-Witt devem ser aproveitados?”

Sim, é claro. Eles até podem ter algo realmente do Samir.

4

“Gostaria de contar com as críticas enquanto ainda é tempo”.

Eu vou tentar lhe mandar algo amanhã; no mais tardar, depois de amanhã.

...

Bom, daqui em diante vai um e-mail que escrevi em casa... Talvez ele não contenha nada de novo para vocês. Mas talvez possa ser útil em alguma coisa.

No fim, acrescento algumas coisas que andei escrevendo.

Como é ‘filósofo’ em grego? Estou precisando dessa informação –

Marcos, dá para traduzir para o alemão isso aqui para mim?

“O significado de ‘azul’ não é a imagem mental do azul”

Abração,

Murilo.

Aqui vai o e-mail:

Marcos e Samir,

“Eu não gostaria que com meus escritos os outros fossem poupados de pensar. Mas, se possível, que eles estimulassem alguém a pensamentos próprios”. (Wittgenstein, prefácio das IF)

Acho que esse trecho das IF talvez seja o mais perturbador para os comentadores de Wittgenstein. Sorte deles que está no prefácio, que se pode facilmente ignorar. E azar o nosso. Se Wittgenstein tivesse colocado isso no meio do argumento da linguagem privada ou das “rule-following considerations”, então ficaria mais difícil para os comentadores simplesmente pularem sua afirmação de que ele queria estimular os outros terem pensamentos próprios.

Ter pensasmentos próprios? Mas isso é possível? Não já está tudo feito na filosofia? Como pode Wittgenstein ter cometido um erro tão grande?

Vamos com calma.

Acho que Wittgenstein queria as IF tivessem sobre os seus leitores um efeito semelhante ao que a passagem que ele cita de Agostinho teve sobre ele. Acho que ele queria ser tratado como ele tratava os outros. Como uma fonte de estímulo.

(Descobri recentemente que há só um erro na citação de Agostinho, e mesmo assim, como explica IF 3, não é um erro completamente errado. Agostinho se expressou mal (ele se expressou de maneira desnecessariamente sofisticada, e escorregou nessa casca de banana). E é só desse erro que Wittgenstein fala no começo das IF. Coloco aqui o trecho da passagem de Agostinho que contém o seu erro, e o seu erro em itálico: “Assim, enquanto eu ouvia as palavras repetidamente usadas em seus lugares em sentenças diferentes, eu gradualmente aprendi a compreender quais objetos elas significavam (...)”. Esse é o único erro (ou talvez seja melhor dizer: a única fonte de erro) da passagem de Agostinho. Agora, por que Wittgenstein não deixa isso claro desde o princípio? Talvez isso explique: “Eu não gostaria que com meus escritos os outros fossem poupados de pensar”)

Wittgenstein queria ser uma fonte de estímulo.

Mas por conta dos comentadores, não podemos ler as IF como Wittgenstein queria que fossem lidas. Não podemos ler nada assim. Temos que respeitar os filósofos. E temos que ser hipercondescentes com eles.

Não podemos fazer o que eles fizeram (como se a filosofia fosse algo sobrenatural, que está simplesmente fora do nosso alcance). Não podemos fazer com eles o que eles fizeram com os outros (não podemos fazer o que fez com que eles se tornassem filósofos). Temos que apenas contemplá-los, reverenciá-los (ficar espantados). E expor (simplificando) o que eles fizeram. E da maneira mais condescendente possível.

Mas se encontrarmos um brasileiro que se meta a fazer com eles o que eles fizeram com os outros, temos que mostrar os dentes e ser agora hipercríticos... O que não é difícil de se fazer. Se não encontrarmos nenhum erro no que ele escreveu, poderemos simplesmente dizer que é algo que não tem valor.

Estranho, não? Com os filósofos canônicos, temos que ser hipercondescendentes. Se eles falarem uma merda, precisaremos dizer que fomos nós que não os compreendemos... Com os brasileiros, porém, temos que ser hipercríticos. O que eles têm de mais genial, temos que dizer que é uma merda. De um jeito ou de outro.

Pelo menos, essa é a agenda dos comentadores brasileiros. Será que é para que não surjam mais filósofos – e assim não tenham mais pesos para carregar?

Lembrei agora de um asno (e não obstante, professor) para quem dei um texto de minha autoria e que me respondeu dizendo que eu tinha escrito um “belo conto de fadas hegeliano” (duvido que esse idiota conheça Hegel).

Porra, eu era só um estudante! Isso não se faz, caralho! Que filho da puta, que imbecil...

É preciso argumentar, é preciso mostrar o erro, não só sentenciar “Está errado” sem dizer porquê. Básico, não? Mas não foi o que ele fez. Bom, fui tão estimulado por ele (e por outros) que deixei minhas idéias de lado... Para minha surpresa, fui encontrá-las uns dois anos atrás, no segundo volume dos comentários de Baker & Hacker sobre as Investigações... Então, se foi um conto de fadas o que escrevi, não foi um conto de fadas hegeliano, mas wittgensteiniano. E aquele imbecil vivia falando de Wittgenstein... É um otário... Um completo otário...

“Saúda aquela criança que passa; será, talvez, um homem. Saúda-a duas vezes; será, talvez, um grande homem”. (Confúcio)

Bom, todos sabem o que aconteceu com Freud no início da sua carreira (a gente só não sabe o que aconteceu com os caras que o ridicularizaram). E também com Walter Benjamin. E com o Tractatus: ninguém queria publicá-lo.

Talvez aquele asno apenas tenha feito comigo o que fizeram com ele. Ou algo semelhante com outra pessoa na frente dele... E ele achou bonito. Estava só esperando uma oportunidade para aplicar a sua frase de efeito... Talvez ele ache que filosofia seja isso: trocar elogios e ofensas... (Pensemos na discussão entre analíticos e continentais... Não é simplificá-la dizer que ela se resume a isso. Pelo contrário, dizer que ela é mais do que isso é mistificá-la.)

Não sei de onde aquele asno tirou todo o seu sarcasmo gratuito...

A arte de analisar poeira teve suas motivações... Eu devolvi contra os comentadores o que estavam fazendo comigo.

De fato: o que fiz foi isso: pulverizar os comentadores mais com ofensas do que com argumentos... Acho que A arte de analisar poeira, assim, não é de muita serventia como um manual. Pelo contrário, ele aponta na direção errada. O que importa mais na filosofia não é a veemência, mas os argumentos. São os próprios argumentos que devem ser contundentes.

Será que os estudantes dos outros países enfrentam problemas semelhantes?

Eu não sei o quão putos vocês ficam com isso. Eu fico muito puto. Não só por razões éticas. Mas também por razões filosóficas. Fazer filosofia não é algo possível apenas para quem nasceu com um dom especial. isso não existe. Isso é ridículo. Qualquer um pode ser um filósofo. Qualquer um pode ser um grande filósofo.

Só é preciso lembrar que o Brasil não é um reino, e assim não pode haver um rei no Brasil.

Só é preciso lembrar que se alguém no interior da Bahia desenvolvesse por si mesmo, sem nunca ter passado da 4º série, a mecânica newtoniana, ele não seria considerado um gênio, pois teria feito o que já foi feito...

“Não passava de um imbecil
Até que um produtor o descobriu
Até que o imbecil não era de todo mal
E transformou-se num sucesso nacional”
Jesse Go – Ultraje a rigor

Simplesmente não pode haver um rei no Brasil. Aqui ele só pode ser um palhaço. Parece que é a mesma coisa que acontece com os filósofos brasileiros.

É claro que se todo mundo se ocupasse só em escrever o que pensa, sem jamais se engajar em numa tarefa da qual um comentador não pode se esquivar, como a de ler, então – devo isso ao Cabrera – não haveria muito porquê escrever...

(Mas eu não poderia simplesmente escrever um diário filosófico para mim mesmo? Evidentemente, não preciso escrever só para os outros. Nesse caso, é claro, não serei considerado filósofo. Mas isso não importa. Se alguém achasse o meu diário (alguém que não fosse um asno), veria aqui filosofia.)

Mas também se ninguém pensasse, se ninguém colocasse no papel os seus próprios pensamentos, não haveria nada para ser repensado, não haveria nada para ler e nem sobre o que escrever.

Devo isso a mim mesmo? Ou também ao Cabrera, que me apontou somente o primeiro argumento – talvez deliberadamente – e me forçou a respondê-lo?

Essas são formas especiais da pergunta: na filosofia só há repetições ou surgem também coisas novas?

A minha resposta – devo isso a Wittgenstein (IF 189) – é que realmente surgem coisas novas, que só não podemos dizer que surgem coisas novas caso tomemos “não surgem coisas novas” como uma norma de expressão, caso deixemos de usar “não surgem coisas novas” para fazer distinções. Platão não estava contido no “Tudo é água” de Tales, nem Diderot estava contido em Platão. Existem tanto novidades quanto repetições na filosofia. Por que achar que uma coisa exclui a outra?

(A distância entre Carnap e Hemsterhuis: é ela tão tão pequena quanto a distância entre Carnap e Schlick?)

“Não existem novidades na filsofia” não é muito mais do que uma frase bonitinha. E nociva.

Além do mais, percebi recentemente que é possível seguir um filósofo sem repeti-lo em nada (filosofar é também segui-lo, e pode-se até argumentar que comentar não é segui-lo). Assim como uma criança pode demonstrar ter compreendido a definição ostensiva “Esse livro aqui, por exemplo, é vermelho” aplicando ‘vermelho’ para outros livros e até para objetos que não são livros (ainda que não possa demontrar tê-la compreendido aplicando ‘vermelho’ para suas pós-imagens ou imagens mentais), assim também é possível demonstrar que se compreendeu um filósofo aplicando o seu pensamento a outros assuntos (a filosofia, como a lógica, é tematicamente neutra).

(As Investigações filosóficas, por exemplo, trazem ao mesmo tempo uma série de métodos de investigação filosófica (ver IF 2 (criação de modelos para uma visão mais clara das coisas) e IF 10 (formas de expressão), por exemplo) que podem ser aplicados para outros assuntos que não os problemas filosóficos em torno da linguagem, e um exemplo de aplicação desses métodos para resolver os problemas filosóficos em torno da linguagem. Mas as Investigações são tematicamente neutras. Não foi por acaso que Wittgenstein chamou uma versão preliminar das IF de ‘manual’.)

Aliás, se a criança simplesmente apontasse para o livro usado na definição ostensiva de ‘vermelho’ e dissesse “Esse livro aqui, por exemplo, é vermelho”, então ela não teria demonstrado compreensão alguma. (Adendo a uma nota sobre a aula de um heideggeriano qualquer.)

Também é possível – e devo isso ao Marcos – repetir literalmente um filósofo sem segui-lo em nada. Para lembrar do seu exemplo: se A dissesse “Eu daria para um bom médico” e B respondesse “Você daria para um bom médico?”, B teria repetido literalmente A, mas pervetido completamente o sentido do que A disse. De novo: se a criança apontasse para o mesmo livro usado na definição ostensiva, ela não necessariamente demonstraria compreensão.

...

Comentários sobre comentadores

1 “Se Descartes estiver certo, então os comentadores não existem”.

2 Na verdade, ele pensa. Só não de maneira filosófica.

3 O comentador não apenas cita.

4 Pode-se dizer que quem apenas cita, também pensa. E até mesmo que há uma boa dose de originalidade no citar. Afinal, quem cita faz uma escolha, cita isso e não aquilo, e assim mostra a sua personalidade, a sua criatividade.

5 Há um perigo em se dizer que se Descartes estiver certo, então o comentador não pensa. Trata-se, é claro, de uma verdade profunda. Mas não muito bem expressa. Assim, ela pode ser colocada em questão... E o que se queria dizer com ela pode ser perdido.

6 O que importa não é dizer que o comentador não pensa. Pode-se dizer que ele pensa. Só é preciso deixar claro exatamente como é que ele pensa.

7 De maneira geral, os comentadores acham que devem se limitar a fazer meras exposições. Isto é, que devem não investigar os filósofos que comentam, não submeter a um exame o que eles dizem. Pelo contrário, devem apenas – no sentido wittgensteiniano – interpretá-los, substituir suas palavras por outras.

8 Evidentemente, interpretar um filósofo não consiste simplesmente em tomar suas afirmações e reescrevê-las de uma outra maneira.

9 Na verdade, está mais para reescrevê-las de uma maneira tal que se possa dizer que ele não foi meramente copiado, que ele não foi meramente transcrito (pois citar não é ainda comentar), mas ao mesmo tempo de uma maneira tal que se possa defender que ele não foi em momento algum traído, que realmente o seu pensamento, não um outro pensamento, foi exposto, que não se disse nada além do que ele quis dizer (pois comentar também não é propriamente filosofar). Trata-se, sem dúvida, de uma tarefa delicada.

10 Evidentemente, interpretar um filósofo consiste simplesmente em tomar suas afirmações e reescrevê-las de uma outra maneira.

....


E para vocês, aqui um trecho da minha dissertação (que conterá também 7, 8, 9, embora não em aforismos). Acabei de escrever essa porra. Então, é possível que vocês encontrem alguns erros de digitação, etc. Mas as idéias, acho que estão certas. O que quer dizer que essa porra vai entrar na minha dissertação.

Depois de 7:

É na seguinte passagem das Investigações que se pode encontrar o sentido wittgensteiniano de ‘interpretação’:

Portanto, há uma tendência para se dizer: todo agir de acordo com uma regra é um interpretar. Porém, de ‘interpretar’ só se deveria chamar: substituir uma expressão da regra por outra. (IF 201c)

Assim, se for verdade que filosofar é apresentar regras, pode-se dizer que comentar é interpretar, isto é, “substituir uma expressão da regra por outra”. Se for verdade que o que faz o filósofo x ao dizer coisas do tipo “Não podemos saber o que os outros realmente estão pensando” é apresentar não proposições empíricas, não constatações, não descobertas, não descrições de fatos, mas proposições gramaticais, formas de falar, normas de expressão, numa palavra, regras, então o que o comentador de x faz ao dizer “Segundo o filófoso x, não se pode saber o que os outros realmente estão pensando” ou então “Segundo o filósofo x, os pensamentos são essencialmente inefáveis” é também apresentar regras, aliás, as mesmas regras apresentadas por x, só que com outras palavras. Evidentemente, o comentador não apenas copia x. Ele interpreta x. Mas ele não modifica x. Pelo menos, não se interpretá-lo corretamente.
O que é verdadeiro para o comentador de x, é especialmente verdadeiro para o comentador de Wittgenstein. As Investigações são também uma coleção de regras, uma coleção de proposições vazias. O que não significa, é claro, que elas não tenham nenhuma serventia. Pelo contrário, elas são ferramentas filosóficas, Werkzeuge. De fato, Wittgenstein chegou a dizer que uma versão preliminar das Investigações filosóficas era um manual (ver nota ...). Então, existe uma diferença entre dizer “Não podemos saber o que os outros realmente estão pensando” e dizer “Um ‘processo interno’ precisa de critérios externos” (IF 580). Mas a diferença entre essas duas afirmações não é exatamente que a primeira é falsa e a segunda é verdadeira.
De fato, é de se perguntar se a primeira realmente é falsa. É de se perguntar se ela é realmente uma proposição empírica. Se dissermos “Mas eu sei o que ele está pensando, ele acabou de me falar”, o filósofo x reconhecerá que disse uma inverdade? Se ele reconhecer que disse uma inverdade, então se poderá dizer que ele apresentou “Não podemos saber o que os outros realmente estão pensando” como uma proposição empírica, aliás, como uma proposição empírica falsa.
Mas ele pode simplesmente se negar a dizer que “Não podemos saber o que os outros realmente estão pensando” expressa uma inverdade. Assim, será preciso dizer que “Não podemos saber o que os outros realmente estão pensando” constitui antes uma regra. Nada pode ser apontado contra ela. Nesse caso, porém, é preciso ser coerente, o que o filósofo x nem sempre é. Não se pode então apontar uma pessoa que fica calada e se recusa a dizer o que está pensando como uma confirmação de que “Não podemos saber o que os outros realmente estão pensando”. Se nada pode ser apontado contra “Não podemos saber o que os outros realmente estão pensando” , então também nada pode ser apontado em seu favor. É possível dizer que ela não é falsa. Mas não ao mesmo tempo dizer que ela é verdadeira.
Então, a proposição “Um ‘processo interno’ precisa de critérios externos” é verdadeira? Obviamente, não. Ela não é uma tese. Ela não expressa um fato. O que ela diz é precisamente que a expressão verbal de pensamento não é um sintoma, mas um critério. Ou seja, a expressão verbal de um pensamento não está para o pensamento que ele expressa assim como o espirro está para o vírus da gripe. Não se pode contornar a expressão verbal de um pensamento e chegar ao pensamento mesmo, assim como se pode contar o espirro e chegar ao vírus. Um pensamento não pode ser identificado a não ser por meio da sua expressão. Ele não é um processo independente (o que talvez explique as aspas em ‘processo interno’). É possível isolar os sintomas da gripe do vírus da gripe para ver se um realmente é a expressão sintomática do outro. Logo, é possível determinar se a afirmação de que um é a expressão sintomática do outro é verdadeira ou falsa. Mas não é possível isolar a expressão verbal de um pensamento do pensamento que ela expressa para ver um é realmente a expressão criterial do outro. Logo, não é possível determinar se a afirmação de um é a expressão criterial do outro é verdadeira ou falsa.
Então, não se pode dizer nem que “Um ‘processo interno’ precisa de critérios externos” é uma afirmação verdadeira, nem que é uma afirmação falsa. Nada pode ser apontado para confirmá-la, nem para desconfirmá-la. De fato, ela é uma regra. Mais precisamente, ela é uma Werkzeug. E a sua serventia, acabamos de mostrar.
Os comentadores de Wittgenstein parecem muitas vezes esquecer que as Investigações filosóficas trazem precisamente investigações filosóficas e não investigações empíricas. Isto é, que proposições como “Um ‘processo interno’ precisa de critérios externos” são gramaticais e portanto vazias. Elas não expressam as opiniões pessoais de Wittgenstein. Elas expressam regras. E não regras de uma linguagem inventada por ele, mas regras da nossa própria linguagem.
Talvez o que confunda os comentadores é fato de que eles não encararam as gramaticais das Investigações filosóficas como uma coleção de Werkzeuge, como uma coleção de ferramentas para serem usadas, mas como um fins em si mesmo. Trata-se, porém, de um erro. “Um ‘processo interno’ precisa de critérios externos” não é uma verdade, como eles aparentemente gostariam que fosse. Achar que ela expressa uma tese, que ela expressa uma verdade, é tratá-la como “selvagens” (IF 195c).
O que há de Wittgenstein nas Investigações é antes de tudo o uso que ele fez das regras da linguagem, bem como a forma particular com que ele as expressou. Assim, o que os comentadores de Wittgenstein fazem ao interpretá-lo é formar novas Werkzeuge a partir das suas Werkzeuge, preservando algo da forma particular com que ele as expressou. Porém, é curioso que os comentadores de Wittgenstein geralmente não usam as Werkzeuge de Wittgenstein, nem as Werkzeuge que eles mesmos desenvolvem. Elas proliferam na literatura secundária. Mas com raras exceções permanecem inoperantes. Além do mais, eles não costumam aplicá-las para resolver problemas filosóficos diferentes dos problemas para os quais Wittgenstein as aplicou.


É isso aí –

Abração,

Murilo.


De Samir


Acabei de ler o artigo "borges"...

e realmente ele não é bom....mas sim excelente...

mas de fato esse artigo não é digno de minha autoria

uma vez que eu (a priori) não sou digno de produzir um texto tão bem escrito...

aceito o presente....

parabéns pela competência...

aliás...quero fazer uma única observação...

no caso das nove moedas...o realismo ainda poderia ser refultado uma vez que o fato de as moedas serem recuperadas pode ser interpretado como "parece que foi recuperado" ou seja...parece que as moedas perdidas são as mesmas que as que foram encontradas...e assim por diante...
mas sugiro não incorporar essa observação ao texto...
De Murilo

Escrevi isso aqui para o Marcos - e achei que talvez pudesse lhe interessar:

Wittgenstein queria que as IF fossem um manual. Quando estamos aprendendo a falar, os adultos nos pegam pela mão e nos ensinam a traçar o 'N' direito e não invertido, etc. (Eles são gênios, eles são gigantes...)

Mas chega um momento em que devemos começar a escrever por nós mesmos...

Assim, pode ser interessante - num primeiro momento - levar os estudantes a fazer comentários, a interpretar, etc... Mas a universidade não deveria parar na pré-escola!

Os filósofos brasileiros são semi-analfabetos. Não saem da fase de alfabetização.

Dê um instrumento musical a um comentador e toque uma frase musical para ele uma frase. Ele a repetirá. Mas filosofar é tocar uma música própria.

O que se deve repetir não é a informação, mas a atitude.


É isso aí –

Abração,

Murilo.

De Murilo

Marcos, Alam, Samir, Mauro, Julio, Nildo,

Vocês sabiam que os chimpanzés são geneticamente mais próximos dos humanos do que dos orangotangos? Eu não me surpreenderia se vocês dissessem que não, porque, como a gente sabe muito bem, os filósofos de hoje - especialmente aqui no Brasil - não estão nem aí para a realidade empírica. Compreendo essa posição. Há muita confusão entre empírico e conceitual e coisa e tal... Mas acho que a gente não precisa assinar embaixo de tudo o que Platão escreveu...

Queria escrever aqui umas coisas sobre os humanos e os demais animais para mostrar que podemos, sim, nós da filosofia, aprender muitas coisas interessantes com as ciências humanas - especialmente para entendermos melhor o mundo interno humano. Esse preconceito contra a pesquisa empírica que a filosofia instila na gente não serve para nada - a não ser para nos transformar em experts em nada...

Apesar dos chimpanzés e dos orangotangos serem bastante parecidos morfologicamente, existe entre eles uma distância genética maior do que a que existe entre os chimpanzés e os humanos... Isso significa que a linhagem que levou aos orangotangos se separou da linhagem dos demais primatas antes da linhagem que levou aos seres humanos... De fato,
a organização social dos orangotangos é a mais singular de todas as organizações sociais encontradas entre os primatas - inclusive humanos. Os orangotangos costumam ficar sempre distantes uns dos outros. Isso não acontece com nenhuma sociedade humana e com nenhuma outra sociedade primata. Há indíviduos que vivem isolados. Mas não sociedades que tenham o isolamento entre todos os indivíduos no seu cerne. Esse é um dado interessante. Vou tentar explorar mais adiante porquê.

Se existem primatas que merecem um lugar especial por sua singularidade genética, esses primatas são os orangotangos e não os humanos... Mas quando Darwin elaborou a teoria da evolução, os europeus achavam que os seres humanos eram muito diferentes dos demais primatas, e achavam também que os subgrupos humanos eram muito diferentes entre si. Então, assim que surgiu a teoria da evolução, pensou-se que a linhagem que levou aos humanos tinha se separado da linhagem dos outros primatas há muito tempo atrás... Isso explicaria também porque existiam diferenças tão grandes entre os subgrupos humanos... Quando a genética mostrou que existe um grau de parentesco maior entre os humanos e os chimpanzés do que entre os chimpanzés e os humanos, achava-se que a linhagem que levou aos humanos tinha se separado há cerca de 15 milhões de anos atrás (alguns paleontólogos falavam até em 30 milhões de anos). A genética apontou entre 6 e 8 milhões de anos como uma data mais correta. Aliás, não se sabe se foram os chimpanzés ou os humanos que se separaram primeiro... Isso também significa que a separação entre os diferentes subgrupos humanos foi bem mais tardia do que se pensava - e que assim as diferenças entre eles são realmente peqeunas, restringindo-se a diferenças na cor da pele e outras coisas igualmente sem importância.

Se todos os primatas são extremamente sociais (com a exceção do orangotango, que se separou dos demais primatas há muito mais tempo do que os humanos), é razoável pensar que essa característica já estivesse pronta antes do surgimento dos humanos. Outra coisa que já estava pronta era o uso (e a manufatura) de ferramentas e de símbolos. Isso significa que a sociedade e a cultura começaram a ser desenvolvidas antes do surgimento dos humanos. Esse é um resultado interessante do qual a filosofia parece estar completamente alheia.

Bom, quando o manuseio de ferramentas se torna uma vantagem adaptativa, isso significa que o bipedalismo também se torna uma vantagem adaptativa - e vice-versa. Um contribuiu para o desenvolvimento do outro. E esses dois, por sua vez, favorecem e são favorecidos por uma maior coordenação motora fina e um cérebro mais desenvolvido...

Os chimpanzés de hoje manipulam uns aos outros... Isso demanda cérebro... Se isso for uma vantagem adaptativa, então quanto maior a capacidade de manipular os outros (quanto maior o cérebro), maiores são as possibilidades de passar os genes adiante...

O cérebro humano é um resultado de relações sociais que existiam antes do surgimento dos humanos... O cérebro humano começou a crescer porque os primatas já estavam desenvolvendo a cultura... A cultura introduziu novas pressões seletivas e minimizou as pressões seletivas do ambiente... Por isso, o cérebro começou a crescer - e a morfologia humana, como resultado da acumulação tecnológica e cultural, tornou-se cada vez menos adaptada ao ambiente.

Isso tudo tem a ver com a construção do mundo interno, a ontologia das emoções...

Há sentimentos que podemos considerar diádicos ou triádicos... Esse é o caso da vergonha e do ciúmes, por exemplo... A sensação de dor, por outro lado, pode ser considerada monádica... Não é preciso viver em sociedade para sentir dor quando se leva uma picada de abelha... Mas é preciso viver em sociedade para sentir vergonha ou ciúmes...

Se tivermos uma clareza maior quanto às condições que precisam ser satisfeitas para podermos ter cada um dos nossos sentimentos, poderemos ter uma visão mais clara de quais precisam da linguagem para existir e quais só precisam da sociedade... Segundo Wittgenstein, a esperança é um sentimento do primeiro tipo - já que ela precisa de uma linguagem com dispositivos temporais. Mas o ciúmes talvez só precise da sociedade, não da linguagem.

A gente tende a ver o processo de imersão na cultura como se ele consistisse no aprendizado de quais sentimentos devemos sentir em quais contextos, isto é, como se ele consistisse no processo de correlação entre os membros ontologicamente independentes dos seguintes conjuntos: S={raiva, alegria, medo...} e C={ser passado para trás, ser presenteado, ser ameaçado...}. Mas talvez as coisas aconteçam de maneira um tanto mais complexa. Não apenas aprendemos a correlacionar os membros de S aos membros de C. Aprendemos a ter os próprios membros de S. É claro que somos biologicamente - cerebralmente - hormonalmente - capazes de ter os membros de S. Ou pelo menos de agir como se estivéssemos sentindo um dos membros de S...

Talvez comparando os hormônios e os neurotransmissores dos diversos primatas, seja possível compreender melhor a ordem de surgimento dos sentimentos psicológicos... Por exemplo, suponhamos que o sentimento x seja associado ao hormônio x' e que o sentimento y seja associado ao hormônio y'... Bom, se primatas muito distantes filogeneticamente dos humanos tiverem x', mas não y', poderemos talvez dizer que x surgiu antes de y e que talvez x tenha como pré-condição a vida em sociedade e y a linguagem...

(Alguns traços de caráter são generalizações de sentimentos...)

Descobri recentemente que a Rússia desenvolveu uma psicologia marxista... Resumindo, ela diz que os sentimentos, os tipos psicológicos, etc., são artefatos culturais, e que somos levados, desde a infância, a nos encaixar nesses loci justamente para reproduzirmos as relações da nossa sociedade... Isso é muito interessante, não?

Bom, isso tudo é muito louco... Já cansei de escrever agora... Mas o que eu queria dizer era o seguinte: que as ciências biológicas e humanas podem nos ajudar a compreender melhor a ontologia e até mesmo a lógica dos sentimentos... A gente pode beber em todas as fontes... A gente pode aprender muitas coisas estudando o que não entra na história da filosofia.

É isso aí -

Abraços,

Murilo.

De Marcos

Do caralho, muitas coisas pra comentar agora. So vou mencionar um detalhe: vc fala da necessidade de dispositivos temporais linguisticos para se sentir esperanca. Nao me parece claro em que medida o dominio de uma linguagem qualquer esta relacionado a esses dispositivos cognitivos mais sofisticados.
Tudo bem, parece que so os humanos sentem esperanca. E so os humanos possuem uma linguagem verbal articulada de maneira complexa. Mas nao eh por isso que uma coisa precisa depender da outra...
Tentei sugerir que os primordios das praticas agricolas sao uma condicao - cultural - para dizer que certos animais possuem os dispositivos temporais dos quais depende o sentimento da esperanca.
O problema parece ser que os filosofos tendem a resumir no termo `linguagem` um estado ontologico de coisas excessivamente vasto. Se o termo `linguagem` resume todo o espaco interior das coisas humanas, entao nao adianta muito dizer que dominar uma linguagem eh condicao para sentir esperanca - pois isso apenas significa dizer que eh preciso viver como humano para sentir esperanca, tese que em nada ajuda a explicitar as condicoes subjacentes a esse sentimento.
Mas se restringimos o termo `linguagem` ao seu uso mais corriqueiro - significando uma midia expressiva - entao se torna nebulosa a relacao entre a troca de informacoes numa comunidade e a posse de dispositivos cognitivos temporais pelos membros dessa comunidade.
Em outras palavras: dizer que os dispositivos temporais da esperanca dependem de uma linguagem eh dizer pouco ou nada sobre a esperanca: eh apenas afirmar dogmaticamente um suposto primado humano sobre este sentimento. Eh preciso atravessar o abismo fantasioso que a tradicao dos teologos interpos entre filosofia e ciencia.
Porra, o que impede os macacos de desenvolverem plenamente a capacidade de cultivar alimentos? Gostaria que alguem me explicasse em detalhe essa questao.
Abracos,
Marcos.

De Murilo

Marcos,

"Porra, o que impede os macacos de desenvolverem plenamente a capacidade de cultivar alimentos?"

Cara, pelo que tenho lido, há muitos macacos que fazem uso de plantas medicinais - as grandes indústrias farmacêuticas inclusive mandam zoólogos para a floresta para descobrirem novos remédios... Por exemplo, tem uns macacos que enrolam uma folha felpuda e a ingerem sem mastigá-la para combater vermes... A folha sai inteira, recheada da galera do mal...

Outra coisa: os humanos são os primatas de alimentação mais diversificada... Tem uns macacos africanos, por exemplo, que comem basicamente figos...

Tem mais: quando se vive na selva, não é preciso cultivar o que já nasce espontaneamente... Acho que o cultivo tem a ver com a escassez: com a formação de grupos sociais maiores e já saindo da selva...

Aquela parada de que o bipedalismo, o manuseio de ferramentas e o aumento da massa cerebral influenciaram-se e reforçaram-se mutuamente no curso da evolução tem um outro lado interessante: o que vemos aqui é um esquema conceitual que tenta escapar do dualismo lógico entre a mente e o corpo...

Abraços,

Murilo.

De Murilo

Galera,

Tenho pensado muito, vocês sabem, na possibilidade de constituição de uma filosofia autenticamente brasileira - quero dizer, autenticamente brasileira não no sentido de ser uma filosofia verde e amarela, não no sentido de ser uma filosofia com traços descaradamente nacionalistas e provincianos, mas no sentido de ser uma filosofia autônoma, com traços próprios, uma filosofia que não fosse uma simples reprodução balbuciante da filosofia européia - uma filosofia, enfim, que pudesse se tornar um produto de exportação.

Vou tentar apresentar aqui alguns caminhos que a gente poderia trilhar - ou que a gente poderia simplesmente articular de maneira mais sistemática sem necessariamente trilhar. Talvez vocês não concordem com nada do que vou escrever aqui. Mas também acho que a gente não tem obrigação nenhuma de entrar em acordo. Na verdade, acho que a divergência é muito mais produtiva. Como diria Alam, quem não diverge de si mesmo, não avança.

Não sei se a expressão "filosofia sincrônica" é realmente boa... Eu gostaria de ter pensado numa melhor... Mas acho que ela serve para começar a discussão... Então, considerem o que vou escrever agora como um programa para uma filosofia sincrônica... Vou tentar explicar que é perfeitamente legítimo fazer uma filosofia sincrônica. Se seria interessante fazer uma filosofia sincrônica, isso é algo sobre o qual vale a pena pensar.

Vocês conhecem os conceitos saussureanos de 'diacronia' e 'sincronia'. Com esses dois conceitos, Saussure simplesmente quis dizer que a lingüística poderia tanto abordar a linguagem como um fenômeno histórico (é o que faz a etimologia, por exemplo) quanto abordá-la como um sistema com uma estrutura própria, um sistema com diversos componentes conectados entre si das mais diversas maneiras (é o que faz a lingüística contemporânea).

Assim, a história é uma disciplina essencialmente diacrônica. A sociologia, por sua vez, é essencialmente sincrônica.

Podemos também entender a palavra 'sincronia' no seguinte sentido: fazer um estudo sincrônico é simplesmente estudar x e y tal que x e y fazem parte da mesma seção temporal; assim, estudar Novalis e Fichte seria fazer um estudo sincrônico - embora ambos tenham vivido na passagem do século XVIII para o XIX.

Não é nesse sentido que estou querendo usar a palavra 'sincronia'. Quero usá-la assim: x faz um estudo sincrônico de y quando x e y fazem parte da mesma seção temporal. Nesse sentido de 'sincronia', fazer um estudo sincrônico seria fazer um estudo necessariamente mais próximo da sociologia do que da história.

O meio que nos cerca - não só o social, como também o conceitual - tem uma pancada de coisas que seria interessantíssimo estudar.

Por exemplo, hoje em dia há movimentos anti-manicomiais... Poderíamos fazer um estudo filosófico desses movimentos analisando o que seus membros falam, como eles concebem a mente, como eles concebem a relação entre a teoria e a prática... Poderíamos investigar as relações entre o que eles fazem e o que eles lêem, como eles se apropriam dos discursos que criticam a psiquiatria clássica... Poderíamos, em suma, transitar nessa zona que Platão deixou completamente vazia: a zona entre o mundo das idéias e o mundo sensível...

Essa é uma das coisas que a filosofia sincrônica poderia fazer... Caso vocês achem que assim ela se aproximaria perigosamente da antropologia ou da sociologia, lembrem que assim ela se afastaria salutarmente da teologia... Além do mais, as coisas que tenho lido das ciências humanas têm me convencido de que há nelas tanta filosofia quanto na filosofia - e às vezes até mais... Não devemos ter medo de aproximar a filosofia da realidade... Não devemos ter medo, por exemplo, de tentar mapear e formalizar o discurso dos movimentos anti-manicomiais... Não devemos ter medo de tentar ver como os indivíduos, com o passar do tempo, transitam nesse discurso - quais são os argumentos que os levam de uma posição a outra no espaço das opiniões possíveis sobre as instituições psiquiátricas...

Tem outra coisa... Tenho pensado muito na seguinte questão: quais são as exigências mínimas que uma proposição deve atender para que ela seja considerada uma proposição filosófica?

Ela precisa ter sido escrita por um filósofo canônico? Não.

Ela precisa estar num livro de filosofia? Não.

Ela pode ter sido dita por um transeunte? Sim.

Isso é um dado importante. A lingüística, a sociologia e a antropologia não vêem problema algum em investigar enunciados orais. A filosofia acadêmica, porém, tem um enorme problema com isso. A conseqüência imediata disso é que a filosofia acadêmica acaba se prendendo quase exclusivamente ao passado. Essa dificuldade com o plano oral gera uma dificuldade com o estudo da filosofia local.

Os cientistas sociais brasileiros já discutem há muito mais tempo o problema da colonização intelectual das universidades... Mas eles ainda importam grande parte dos seus instrumentos de análise. Porém, há uma diferença entre a filosofia e as ciências sociais... Podemos dizer que as ciências sociais têm um pouco mais de autonomia... Elas importam as teorias, mas não os objetos de estudo... É claro que isso também pode ser criticado. Mas quando comparado ao que acontece com a filosofia nas universidades brasileiras, vemos que já é um grande passo.

Lembremos também que absolutamente não é verdade que os filósofos canônicos não fizeram etnografia. As Investigações filosóficas de Wittgenstein têm inúmeras observações etnográficas sobre o uso de termos psicológicos, por exemplo. Ele não colheu esses dados nos livros. Ele seguiu aquele dito: "Observe! Descreva!"

Os exegetas mais obtusos de hoje também fazem etnografia. Se abrirmos um artigo qualquer sobre Wittgenstein, teremos grandes chances de encontrar algo do tipo: "Costuma-se pensar que no parágrafo 54 das Investigações, Wittgenstein quis dizer que..."

Agora, olhemos bem para esse "Costuma-se pensar que..." Quem negaria que escrever isso seja fazer etnografia? Isso é uma etnografia que poderia ser chamada de "etnografia mínima". Ela atende as condições necessárias para a aplicação da palavra 'etnografia' e pronto. Não é uma etnografia elaborada, exaustiva. Não é uma etnografia que toma o etnografar como um fim em si mesmo. Mas é uma etnografia.

O que vem depois do "Costuma-se pensar que no parágrafo 54 das Investigações, Wittgenstein quis dizer que..." também é um texto etnográfico. Trata-se, porém, de uma etnografia extremamente especializada. Tão especializada que não parece ser uma etnografia. Mas é uma etnografia.

Então, a filosofia acadêmica de hoje faz etnografia. Porém, só de textos impressos. Trata-se de uma etnografia meio obtusa: ela acha que só é legítimo citar e discutir em detalhe idéias que foram impressas.

Acho que vale a pena distinguir tanto entre 'filosofia mínima' e 'filosofia encorpada' quanto entre 'etnografia mínima' e 'etnografia encorpada'. A fenomenologia husserliana, o atomismo lógico e a filosofia de Wittgenstein são filosofias encorpadas. Elas acrescentam ao conceito de filosofia coisas que rigorosamente não fazem parte dele. Elas também costumam tirar do conceito de filosofia coisas que fazem parte dele... Isso é especialmente verdadeiro para o conceito de filosofia que impere nas universidades brasileiras...

É claro que devemos ser sensíveis para as diferenças entre acrescentar coisas e simplesmente tentar elucidar... Acho que faltou justamente essa sensibilidade a algumas dessas filosofias encorpadas...

O que faz p ser uma proposição filosófica? O que faz q ser uma proposição etnográfica? Eu consideraria essas as questões metodológicas fundamentais da filosofia sincrônica. A primeira delas é especialmente importante, porque ela reabilita como filosófico o que as filosofias encorpadas taxaram como não filosófico (quando queriam dizer que consideravam uma proposição errada, muitas vezes confundiam as coisas e diziam que ela não era filosófica - que ela era poética, por exemplo).

Bom, é isso... Já estou cansado agora... Espero que esse e-mail tenha sido de proveito para vocês...

Abraços,

Murilo.

De Alam

Via de regra,
Não é preciso que a palavra pedra seja dura como uma pedra
Embora, é claro, isso aconteça freqüentemente com gravetos
A exceção das plumas dá a pensar
Se não são todos os nomes inadequados como a rigidez da palavra vento.


De Murilo

Marcos,

Valeu, cara... Porra, tenho uma boa notícia. Uma notícia maravilhosa. Estou me preparando para ir para Manaus. Cara, vou tentar ficar por lá. Dar aula de inglês se for possível, dar a bunda se for necessário. Ser faxineiro, ser garçom. O que for. Ser comido pelas cobras. Morrer afogado nadando no rio Amazonas. Caralho, estou animado.

Porra, você bem que poderia ir mandando uns e-mails falando - e de quebra registrando - como está sendo a sua vida por aí...

Abração,

Murilo.


De Marcos

Falem,

po, bom pra caralho saber das boas novas. Arrume um canto em Manaus que quando eu estiver de volta ao Brasil, e com alguma grana, estarei pintando na area: espero que vc ja tenha travado contato com tribos inospitas...
Nao sei se contei para vcs que estou num canto muito massa aqui na beira do Himalaia. Tipo aquelas historias de viajantes que resolvem parar de viajar, formam familia e abrem uma hospedaria para outros viajantes. O pai eh tibetano e a mae uma gorda alema super gemte boa. A familia se comunica em ingles, hindi e alemao - todos muito fluentes nas tres.
O mais louco eh q estou pagando 350 rupias - uns 17 reais - pela diaria mais cafe, almoco e janta incluidos. E o rango nao eh baixo nivel nao: pessoas de toda parte vem rangar nessa hospedaria, pois aqui se serve comida tipica de 14 paises.
Boto fe que eh dificil de acreditar nisso...
Mas ainda nao estou delirando porque ainda nao cheguei ao Nepal. Estou pensando em ir ate la por volta do dia 15 desse mes - epoca de celebracoes, vai rolar um festival que comemora o nascimento de Shiva.
Escrevo contando as novas.
E, Murilo, nao deixe de avisar quando vc estara vazando para o amazonas. A gente precisa sitiar brasilia. Por aqui tenho conhecido varios coreanos que, nao sei se vcs sabem, sao de linhagem mongol. Gente que entende do assunto.
Abracos,
Marcos.

De Alam

Fala muleke,

Porra mermão, que inveja escrota! ta parecendo Indiana Jones, o Paciente Inglês, sei lá que porra aventuresca. Massa mesmo. é claro que conto com vc pra ir abrindo caminhos por aí para uma viagem próxima e breve por essas bandas (mermão, tenho 2 contos de poupança com um emprestimosinho do meu banco irresponsável....).
Pois é, como é que foi o congresso de filosofia? (se é que vc apareceu por lá).
Bom sumi pq estava de recesso e como esse ano passado foi pra lá de atarefado (trampos, mestrado, burocracias, etc,) tava precisando dar um break no meu sistema nervoso). Mas não sou muito de relaxar, me entedio no descanso. Porra, cheguei hoje e o Murilo com essa de ser comido pelas cobras (agora literalmente).
Pois é muleke, na medida do possível mande seus diários de bordo (não se esquece do seu brother ao chegar no nepal!)
Abraços,
Alam

De Marcos

Falem,
pois eh, nepal ainda nao rolou mas semana passada estive em Kashmir, regiao de disputa entre India e Paquistao; na rua mais militares do que gente.
Pra vcs terem uma ideia, o guia turistico mais famoso - o Lonely Planet - dedica umas tres paginas a todo o estado de Kashmir. Comeca dizendo que eh uma das regioes mais belas da India e passa o resto do texto aconselhando os viajantes a nao visitarem a regiao. Ha uns tempos atras coisa de cinco ocidentais sumiram pelas montanhas e nunca foram encontrados...
Enquanto estive por la, rolou um dia em que varias ruas de Srinagar (capital) estavam fechadas pelo exercito. Motivo: manifestacao do grupo islamico que atualmente detem o poder no Iraque...
Eta mundinho cabuloso.
Bom, Kashmir tambem eh uma regiao famosa pelo comercio. O mais pavoroso foi passar pelo aeroporto na volta com a seguinte lista de itens que vai divertir a galera:
1 - uma boa quantidade de safron, a rarissima planta com a qual se faz o mais delicioso chazinho - so rola de obter as folhinhas na Espanha, Ira e Kashmir, sendo que na ultima se encontra o mais famoso safron;
2 - Kashmiri hash - conhecido e poderoso - nao preciso nem falar...
3 - Uma quantidade modesta de opio do Afeganistao.
E para escrotizar a historinha, passei por todas as trocentas revistas dos militares sem o passaporte, que esqueci no quarto do hotel aqui em Musoorie.
Tenso.
Mas agora tudo bem...
O congresso de filosofia em Delhi foi tranquilo, pena que nao rolou de apresentar o texto do Borges pq eles cancelaram a sessao de "filosofia do novo mundo" - pelo jeito so o nosso texto estava inscrito.
Por agora eh isso, mais relatos dispois.
Abracos,
Marcos.


De Murilo

Galera,

Como vocês sabem, estou aqui em Manaus... Caralho, nunca vi tanto estrangeiro numa cidade brasileira... Até ontem, estava dividindo o quarto no albergue com três australianos... Hoje um foi embora... Na semana passada, tinha também um alemão... A língua que mais ouço por aqui é inglês... Depois português... Depois espanhol... Depois alemão... Depois francês...

Manaus me dá a certeza de que é preciso urgentemente desenvolver tecnologias ecológicas - senão, vamos fritar... Lembrem que a Av. Paulista, cem anos atrás, era uma insignificante estradinha de terra... Agora é essa porra que vocês conhecem.

Cara, rolou uma parada muito bizarra... Alguns dias atrás, eu estava dividindo o quarto só com uma austríaca... Daquelas de pele dourada... No meio da noite, a mulher dormindo só de calcinha, levanta-se, faz alguma coisa e depois deita de novo... Só que na minha cama... Evidentemente, ela errou de cama... Ou melhor, acertou... Se eu fosse um cafageste que nem o Alam, teria comido a mulher na hora... Só que fui um bunda-mole... Compreendi a coitada... Deitou na cama errada...

Ontem eu estava andando na rua e uma adolescente chegou para mim e me pediu para beber da minha 'água - estou andando com uma garrafa d'água para cima e para baixo agora... Estendi a garrafa, ela tomou um gole e depois perguntou: "Quer fazer um programa?" - Eu respondi que não... "Nem por cinco reais?" De novo, respondi que não. E ainda disse "obrigado".

Joguei a garrafa fora... Não sabia por onde aquela boca tinha passado...

Agora há pouco falei que fui um bunda-mole com a austríaca... Na verdade, fiquei umas duas horas me perguntando se eu deveria ou não chupar os peitos dela na tora antes de cair no sono de novo... Resolvi não fazê-lo. Por respeito. A mulher estava indefesa. Acho que não fui bunda-mole... O que temos aqui é a competição entre dois sistemas conceituais diferentes... De acordo com S1, o certo seria meter o bocão e traçar a austríaca - e não fazer isso é bunda-molice. De acordo com S2, o certo seria respeitar a pobre coitada - e não respeitá-la seria filha-da-putice... S1 é o sistema moral que a gente aprende nas mesas de bar durante a nossa adolescência...

S1 chama os seguidores de S2 de otários... S2 chama os seguidores de S1 de canalhas...

Bom, numa sociedade que tivesse só um desses sistemas, os caras não ficariam duas horas pensando o que fazer quando confrontados com uma austríaca gostosa... Sei lá... Talvez isso seja uma característica das nossas sociedades: temos vários sistemas morais competindo, e eles nos fazem hesitar na hora de agir...

Temos rolando por aí duas filosofias diferentes de como devemos - nós homens - tratar as mulheres... Acho que as duas são relativamente completas... Quero dizer: não há coisas que uma responde e a outra não... A filosofia mais moralista (S2) poderia ser criticada de várias maneiras: ela parte do pressuposto de que uma trepada é algo sumamente importante, de que os atos sexuais têm um grande peso simbólico... Talvez não tenham - e assim não teria nada de mais em dar uma chupadinha nos peitos da austríaca... S1 parte do pressuposto do mesmo pressuposto: o sexo é importantíssimo - a gente não deve perder uma oportunidade de trepar... Então, esses dois sistemas estão muito bem munidos argumentativamente...

Seria interessante sistematizar S1 e S2 - na medida em que esses sistemas podem ser sistematizados... Isso poderia ser um exercício puramente formal... Mas os resultados dessas formalizações poderiam talvez ser reaproveitados para formalizar outros sistemas conceituais...

Tem uma outra parada sobre a qual tenho pensado... Tecnologias frasais ou conceituais...

(Os sociólogos vivem falando que a Revolução Francesa levou a uma transformação de valores... Mas não entram nos detalhes desses valores...)

Imaginemos o seguinte:

Um universo bem simples: só há nele seres humanos, uma porrada de esferas azuis, uma porrada de cubos verdes e algumas pouquíssimas esferas verdes e alguns pouquíssimos cubos azuis... Até o ano de 2007, a galera só conhece as esferas azuis e os cubos verdes... Assim, sua linguagem está muito bem adaptada a isso... Digamos que eles tenham duas palavras foneticamente bem simples para designar esses dois objetos: "blá" e "blé"...

Agora, em 2007, um cara vê uma esfera verde... Algo que não é nem "blá", nem "blé"... Porra, pode ser dificílimo dizer nessa língua o que ele viu:
- Galera, vocês não vão acreditar! Eu vi uma parada que era meio blá e meio blé [ao falar isso, o cara está pensando na esfericidade associada a blá e na verdidão associada a blé]... E que ao mesmo tempo não era nem blá e nem blé [vice-versa]...

Diante desse discurso metafísico, alguém pode responder:

- Qualé, doido?! Uma coisa que é ao mesmo tempo: 1) tanto blá quanto blé, e: 2) nem blá, nem blé?! Dá um tempo!

O que falta ao cara que viu a esfera verde poderia ser chamado de "tecnologia frasal" ou "lingüística"... O cara nem consegue se expressar direito...

A própria língua pode impor inúmeras resistências ao desenvolvimento de novas tecnologias... Entre elas, exigências estéticas...

Abração,

Murilo.

De Marcos

Falem,
"... daquelas de pele dourada".
Porra, Murilo!
Agora vamos mudar um pouco a situacao: suponha que vc tivesse ido ate a cama da austriaca e feito a jurupoca assoviar na marra. Isso provavelmente tambem seria criticiado pelos que defendem o sistema S1 (talvez nao pelos extremistas de S1...).
Segundo aquele antropologo universalista, a proibicao ao estupro eh um traco cultural invariavel. Eh claro que quem le aquela lista dos universais pode pensar: "Isso nao quer dizer nada enquanto o universalista se mantem em silencio sobre os criterios para aplicacao do conceito de estupro nas culturas etnografadas..."
Acontece que - fato interessante que so agora me ocorre: aquele antropologo em parte apresenta o criterio para validar a afirmacao de que todas as culturas tem o conceito de estupro. E isso porque na lista tambem consta que todas as culturas possuem formas severas de punicao contra o estuprador.
(Suponho que etnografar um certo tipo de punicao socialmente exercida seja um criterio suficiente para etnografar a abstrata "proibicao" do ato punido numa determinada comunidade...)
Conceitos sao paradas que levam fatalmente a outros conceitos; se a etnografia parte de fatos bastante simples ela pode chegar a conclusoes abstratas de extremo valor. O problema so surge quando os antropologos esquecem as continuidades mais simples entre as coisas e partem da propria ansiedade metafisica ou da gramatica de uma lingua para defender teses superficialmente empolgantes como: "Tal cultura desconhece a nocao de moral" ou o que quer que seja.
Seria interessante pra caralho procurar os elementos conceituais S-invariaveis (nao logicamente, mas antropologicamente invariaveis). Talvez isso tambem seja um criterio minimo para a aplicacao dos conceitos de teoria e de ciencia no campo das coisas humanas...
Abracos,
Marcos.

De Alam

O machismo nosso de cada dia (machista é quem come ou deixa de comer?)

O mail do Murilo me deixou pensando nas possíveis desculpas pra não transar com uma mulher. Pensei o seguinte:

Um dos pressupostos da cultura machista é a pureza libidinal das mulheres, carentes de desejos sexuais, elas devem ser convencidas de que uma boa relação sexual vai ser uma boa. Os mecanismos socias de paquera, corte e azaração podem representar a aceitação feminina desse papel de seres alijados de seus desejos. todo ato sexual é necessariamente uma conquista, onde a femea por fim cede as súplicas masculinas. Chamemos isso de negação da libido feminina, traço machista inquestionável.

Acho que a interiorização desse dogma é responsável por boa parte da culpabilização envolvida na sexualidade feminina (o que vão pensar se eu der no primeiro encontro? posso pagar um boquete sem ser considerada uma vagabunda? mesmo que eu queira não vou dar o cu, etc) e a sua consequente castração do prazer que deveria ser obtido da sexualidade.
Podemos dizer que um dos problemas de nossa sociedade é aceitar o desejo feminino. Tirar da cabeça esse papo de que se vc faz sexo com uma mulher vc vai estar necessariamente se aproveitando, incutindo-lhe um desejo inexistente, em suma, não se escandalizar nem moralizar o fato de que as mulheres querem sexo tanto quanto os homens (senão mais, afinal, algumas dormem de calcinha ao dividirem o quarto com um parceiro em potencial, fingem estar dormindo e caem na cama da vítima, etc).
A abordagem das feministas que conheço é ainda moralista e está distante de aceitar a positividade ontológica do desejo feminino. Para algumas esse desejo está historicamente perpassado de uma consciencia masculina, de um se fazer objeto que lhe foi externamente ensinado.Cumpre urgentemente desexualizar o corpo feminimo, acabar com o coquetismo dos atos, negar ainda mais o sexo das fêmeas. Qualquer pessoa de bom sesno sabe que isso é papo de atrazadas, de frstradas que não se conhecem e vem com essa carochinha de falsa consciencia, ideologia do opressor, etc. Isso é algo mais corola que a igreja, além de ser uma exportação ridícula do modo como a europa enfrenta suas mazelas sexuais. O que fica claro é que de todas as formas recusa-se admitir que as mulhres gozam, querem, comem, e nãos são mais virgens marias. Certa vez vi uma frase no C.A : " enquanto vc acha que me come, eu economizo filhos". Que mulher mais bem resolvida!
Freud tem razão em dizer que nunca as pessoas são mais hipocritas do que quando se fala de sexo e dinheiro. Teimam em aceitar que querem, quando aceitam fzem um bilhão de conscessões fantátiscas e racionalizações absurdas. Observem as expressões:
("Evidentemente, ela errou de cama" : claro, raciocina-se: falta-lhes libido, iniciativa, malícia, ela não pode estar pensando o que eu (sujo e pervertido) estou pensando, é uma santa...
"Compreendi a coitada": Estaria me aproveitando se fizesse o que queria fazer (e que ela parece querer também), ela não pode querer isso, mas ela acha que quer, coitada, não vou fazer, tenho pena de tamanha alienação de si. Moralização cristã da sexualidade
"De acordo com S1, o certo seria meter": Esse desejo de meter nessa mulher também não é meu, um sistema moral com fios invisíveis e ação inexorável manipulou meus desejos, me faz querer fazer as coisas mais sujas, dominar-lhe e submeter o corpo despoticamente. Isso não sou eu quem quer, algo quer isso em mim (um complexo sistema moral S1 me domina). Racionalização defensiva.

O que essas três atitudes revelam é que o sexo quando não é transado, realizado, gozado, mas sim discutido, ganha muito mais relevo e representação simbólica (pra quem o sexo é mais importante, para o padre ou para o praticante casual?)

Desafio sobre o item Moralização da sexualidade: até que ponto as relações eróticas são relações morais (ou moralizáveis)? O sexo não é aquilo que de antemão escapa ao escopo moral? (Não falo de que qualquer moral, mas de uma moralidade radical).

De Murilo

Galera,

Acabei de receber um e-mail do Cabrera (está logo abaixo). Ele perguntou como fazer para que as respostas dele chegassem a todo mundo para quem ando escrevendo... No botão "reply" ("responder") ou perto dele deve haver a opção "reply all" ("responder para todos"). É assim no yahoo, o e-mail que eu uso. Imagino que no gmail deva ser parecido.

Fico realmente feliz quando alguém me manda um e-mail falando o que anda pensando... Espero que isso deixe vocês felizes também.

Ah, tenho uma informação preciosa... Achei aqui numa livraria de Manaus dois examplares do Projeto de ética negativa, do Julio Cabrera - livro que, acho, o próprio Cabrera já considera ultrapassado, mas que eu e uns amigos consideramos absolutamente genial. É sem dúvida uma das melhores coisas que já li. E ainda estou tentando compreendê-lo na íntegra... Os capítulos iniciais sobre o suicídio e a paternidade são bem fáceis de digerir (mais para o intelecto do que para a alma, é claro). Os capítulos seguintes - sobre a ocultação do não ser e coisa e tal - são ainda bastante opacos para mim.

Tenho pensado bastante em "tecnologias frasais" ou "tecnologias conceituais". Lendo um hoje um livro de sociologia da arte, deparei-me com as palavras "criação de novos valores artísticos". Elas são aparentemente inocentes... Mas imagino que não deve ter sido fácil chegar nelas... A idéia que elas veiculam vai além da idéia de "esse quadro é bom, aquele é ruim". Realmente, acho que elas introduzem um avanço tecnológico frasal.

Outra coisa desse livro que me fez pensar em tecnologias frasais foi: a distinção entre os artistas que têm uma vontade consciente de inovar e os artistas que acabam inovando mesmo querendo conformar-se à tradição... Trata-se de uma distinção, creio, que também introduziu um grande avanço tecnológico frasal... Não deve ter sido fácil chegar a ela... Talvez ela realmente só tenha sido possibilitada por uma acumulação cultural...

As tecnologias frasais são sempre, no fim das contas, aproveitadas - ou abandonadas - por um grupo... Maria cria uma nova tecnologia... Mas Joana fica insatisfeita com ela - talvez por razões puramente estéticas... Por fim, Raquel inventa uma outra tecnologia - e essa outra tecnologia acaba pegando...

As tecnologias, acho, não são de ninguém. A gente não deve pudor algum em usar as tecnologias uns dos outros - nem de ceder as tecnologias que desenvolvemos uns aos outros. Elas dependem, em grande parte, do que não saiu das nossas mãos. Nada mais justo do que deixar que elas também passem de mão em mão. Eu não tenho pudor algum em usar nos meus textos idéias desenvolvidas pelo Marcos, por exemplo. No caso específico dele, sei que ele não está nem aí. Gosto de tratar as idéias com esse espírito. Sem pudores. Pegamos uns dos outros os conceitos que são interessantes para o que estamos fazendo - e cedemos uns aos outros os conceitos que desenvolvemos que podem ser de utilidade para o que os outros estão fazendo.

É também por isso que acho que nós da filosofia temos muito a ganhar lendo coisas de outras disciplas: da política, da sociologia, da antropologia... Na verdade, acho que a gente pode tirar muita coisa de proveito até da literatura religiosa - sem falar, é claro, na literatura propriamente dita... Podemos colocar as coisas assim: o que os textos nos fornecem não são apenas dados brutos, mas também esquemas conceituais, instrumentos de análise... E os instrumentos desenvolvidos num campo podem certamente se revelar muito úteis quando levados para outro campo...

Às vezes, é claro, impressionamo-nos excessivamente com uma tecnologia que desenvolvemos... Achamos que finalmente chegamos na verdade só por termos desenvolvido uma tecnologia mais complexa, mais avançada... Sobre isso, acho que as diversas formas de contratualismo são um bom exemplo...

É isso aí -

Abraços,

Murilo.

Aqui vai o e-mail do Cabrera:

Murilo:

Ignoro se você tem uma "mala" ou lista de amigos aos que você escreve e manda seus textos e reflexões (por sinal, sempre muito instigantes), mas te pediria incluir nessa mala o endereço de um amigo e aluno meu, de Goiânia, cara muito interessante e que escreveu também sobre filosofia no Brasil; ele se chama Danilo Pimenta, e seu e-mail é http://uk.f252.mail.yahoo.com/ym/Compose?To=danilopimenta@hotmail.com Ele gostaria receber tuas coisas e poder interagir. Eu enviei finalmente meu "Diário de um filósofo no Brasil" para a editora. Como sempre faço nas férias, continuo meu livro de filósofo "La forma del mundo", que já tem 200 páginas, mas que terá, finalmente, umas 500. Livro descaradamente metafísico (escrito no século do fim da metafísica), sintetiza meu pensamento ético e lógico, de alguma maneira. E estou escrevendo muita coisa auto-biográfica, convencido de que a coisa mais interessante do mundo é chegar a saber como Julio Cabrera conseguirá suportá-lo. Parte desse livro trata do que chamo "açoes residuais", espero que, antes do final das férias, possa enviar esse texto para você. Abraços sincrônicos, JC. (Muitas das coisas que escrevo para você (como esta carta), gostaria que chegassem a teus outros interlocutores (Paiva, etc). Como faço?).

De Murilo

Galera,

O que estou mandando são algumas notas que acabei de escrever sobre os conceitos musicais de lado A e lado B... São conceitos meio underground... É possível que alguns de vocês nunca tenham ouvido falar neles... Um dos motivos principais que me levou a escrever sobre esses conceitos é que estou tentando mostrar que a filosofia é tematicamente neutra - e que ela pode tratar de problemas diferentes dos cinco ou seis problemas que costumam monopolizar a atenção dos cursos de filosofia... Trata-se de um texto evidentemente experimental... Não sei se ele tem qualidades, apenas sei que ele tem defeitos...

Se algum de vocês quiser escrever algo em resposta (ou se não quiser responder esse texto e sim mandar outro texto sobre qualquer outro assunto), aperte um "responder para todos" ao invés de um simples "responder".

Mais uma vez, preciso dizer que gosto imensamente de ler o que vocês escrevem. Continuem mandando as suas coisas. Talvez a gente nunca chega a estabelecer propriamente um diálogo. Mas eu acho que os monólogos simultâneos podem ser igualmente produtivos e interessantes.

Esse texto sobre os conceitos de lado A e lado B pretende ter algo de provocador. A filosofia é tradicionalmente associada a problemas universais e perenes. Esse aqui é um problema extremamente restrito tanto no espaço quanto no tempo. O que eu quero, é claro, não é exatamente mostrar que pode ter um valor universal e perene um estudo dos conceitos de lado A e lado B, mas que um tema não precisa ser nem universal e nem perene para ser de interesse filosófico.

É isso aí -

Abração,

Murilo.

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Os conceitos de lado A e lado B não tiveram uma difusão grande no Brasil; na década de 1980, quando estavam no auge, permaneceram concentrados no Rio de Janeiro e em São Paulo – e agora, com o advento dos CDs, ameaçam ser definitivamente extintos. No entanto, acredito que sua lógica é suficientemente interessante para merecer ser registrada. O que farei aqui, portanto, poderá ser considerado tanto uma modesta contribuição para a história ou a etnografia da música quanto um breve estudo lógico sobre o funcionamento de uma determinada dupla de conceitos, estudo que espero ser útil para esclarecer o funcionamento de outras duplas conceituais análogas.

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De maneira geral, o conceito de lado A designa as músicas que “quanto mais ouvimos, menos gostamos”; o conceito de lado B, as músicas que “quanto mais ouvimos, mais gostamos”. Pelo menos, é assim que os seus usuários costumam defini-los.

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É interessante notar que os conceitos de LA e LB (só para simplificar as coisas, passarei a usar agora, ao invés de “lado A” e “lado B”, as formas abreviadas “LA” e “LB”), embora seja provável que tenham surgido originalmente para qualificar apenas as músicas, começaram rapidamente, nas regiões em que eram empregados com maior freqüência e onde seu poder heurístico foi conseqüentemente mais explorado, a trafegar pelas mais diversas camadas musicais. Em outras palavras, mesmo ancorando-se matricialmente nas músicas individuais (elas são as unidades às quais eles melhor se aplicam), eles conseguiram descolar-se delas para serem aplicados tanto a unidades musicais maiores ou ‘supramusicais’ (por exemplo, grupos e até mesmo gêneros musicais inteiros) quanto a unidades musicais menores ou ‘inframusicais’ (por exemplo, trechos de uma mesma música ou até pequenas frases musicais). De fato, os usuários remanescentes dos conceitos de LA e LB ocasionalmente distinguem entre grupos e refrões LA e LB – e os grupos são supra e os refrões são inframusicais. Na hora de defini-los, porém, recorrem às unidades musicais básicas – isto é, as músicas propriamente ditas – e às fórmulas que já mencionei.

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Acho que vale a pena distinguir entre: 1) até onde os conceitos de LA e LB são ou eram de fato usados; 2) até onde sua lógica interna permitia que fossem usados. O fato de que diferentes grupos de usuários aplicavam os conceitos de LA e LB para camadas ora mais e ora menos afastadas da matriz musical básica (isto é, das músicas propriamente ditas), já basta para mostrar que o espaço de 2 tende a ser sempre maior do que o espaço de 1. É claro que o espaço de 2 também é regulado pela aceitação – pela mútua compreensão – da parte dos usuários dos conceitos de LA e LB. Se em meio a pessoas acostumadas apenas a classificar as unidades musicais básicas de LA ou LB, chamarmos um trecho musical de LA ou LB, a probabilidade de sermos compreendidos será grande. A razão é que os conceitos de LA e LB, uma vez definidos, apresentam uma lógica interna que seus usuários nem sempre exploram.

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Mas os conceitos de LA e LB encontram barreiras para o seu uso. Eles não se aplicam nem às menores unidades inframusicais, nem à maior delas. Isto é, não existem notas LA ou LB e nem a música em si mesma pode ser considerada LA ou LB. Os conceitos de notas e de música estão nos extremos do universo musical. Tudo o que se encontra entre eles é suscetível de ser classificado como LA ou LB. Mas eles mesmos refratam os conceitos de LA e LB. Da mesma forma, as diferentes camadas musicais não são em si mesmas nem LA e nem LB. Os conceitos de LA e LB aplicam-se aos diversos itens de cada uma das camadas, mas não às camadas em si mesmas.

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Pelo que vimos até agora, já deve estar evidente que um item classificado como LA pode conter unidades classificadas como LB. Por exemplo, podemos ter uma música LA com um trecho LB. Também podemos ter um trecho LB com uma frase LA. Mas se as unidades musicais costumam trazer tanto ingredientes classificados como LA quanto ingredientes classificados como LB, como eles mesmos podem ser classificados como LA ou LB? A resposta está na predominância. Uma música LB não é uma música que não tem nenhum trecho LA. Ela é uma música cuja maior parte dos trechos ou cujos principais trechos são LB. Assim, uma vez que todas as músicas, todos os grupos e todos os trechos podem ser classificados como LA ou LB, não existe objeto musical que não seja predominantemente LA ou LB. Nunca há objetos musicais com iguais doses de LA e LB – o que impediria a aplicação tanto de LA quanto de LB. Também não há objetos puramente LA ou LB. Um objeto musical é sempre constituído de mais objetos musicais – e o que se aplica a ele não necessariamente se aplica a cada um dos seus constituintes. Assim, parece que os conceitos de LA e LB têm algo em comum com os conceitos de yin e yang – uma propriedade lógica que poderia ser chamada de “recursão inclusiva”. Eles são aplicáveis a praticamente tudo no universo. E cada um dos objetos aos quais um deles se aplica tem partes às quais o outro se aplica.

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Os usuários dos conceitos de LA e LB geralmente desprezam as músicas LA. O que eles não falam é que são primariamente as músicas LA que faz com que comprem os álbuns e com que escolham seus grupos prediletos. Pelo menos no começo da sua cultura musical, é por causa das LA que adquirem seus discos - mesmo sendo verdade, como eles dizem, que é por causa das LB que continuam a ouvi-los. As LA são as músicas que eles se culpam por gostar (“Tenho que admitir que gosto de...”). As LB são as que têm a obrigação de gostar (“É incrível, mas nunca consegui gostar de...”). É preciso ter um certo grau de desenvoltura para conseguir minimizar os impactos desses defeitos – e um grau ainda mais elevado para transformá-los em qualidades. É claro que o sucesso dessa empreitada depende também do grau de desenvoltura do grupo onde se está. Um indivíduo saído de um grupo G’ com uma cultura musical um pouco mais desenvolvida (um grupo que já aplica os conceitos de LA e LB a diferentes camadas musicais, não apenas às músicas propriamente ditas), colocado em meio a um grupo G” de cultura musical ainda incipiente (um grupo que se aferra fortemente aos conceitos de LA e LB e considera gostar de músicas LB uma transgressão extremamente grave), pode ser discriminado por uma confissão que em G’ geraria risos e possivelmente até despertaria adesões.

De Murilo

Galera,

Vou para Rondônia hoje... De barco... Daqui a uns quatro ou cinco dias chegarei ao Acre... Espero que seja meu destino final...

Os manuais de introdução e de história da antropologia costumam referir-se com um certo desdém aos antigos relatos de viagem - aos colecionadores de curiosidades... Acho que as redômas ocidentais de hoje - Manaus é uma delas - podem talvez explicar porque os caras não podiam fazer muito mais do que isso: colecionar curiosidades. Manaus é uma cidade européia no meio da Amazônia. É uma São Paulo rodeada por um pouco mais de mato. E o que podemos encontrar aqui - dentro de Manaus, dentro da redoma - são só mesmo curiosidades das culturas nativas. Nada mais. Há até espaços físicos para isso: as lojas que vendem lembranças para turistas... Não acho que no tempo das colonizações deva ter sido diferente. Os caras - os europeus - não vinham para cá viver o modus vivendi daqui. Eles traziam o modus vivendi deles. Eles construíam redomas. Assim, não tinham mesmo como acessar nada além de curiosidades.

Abraços,

Murilo.

Endereço website de Samir: http://geocities.yahoo.com.br/samirgorosky1